16.9.08

o Casamento

Era um amor bonito, de uns bons anos. Marcaram o grande dia. O casamento.
Ela escolheu o mais lindo vestido; e foi com linha e agulha que bordou os sonhos todos no corpete.
Ele, era o fraque mais clássico que enchia seus olhos. O mais preto. Viu naquelas costuras firmes a mais profunda galanteza.
A diadema brilhava, feito estrelas.! Era tudo quanto havia de se realizar no caminho. Era princesa.
Artista, de cinema. Dos anos 30. Mocinho.! Tudo culpa das luvas brancas.
Com amor, ela escolheu a gravata mais sóbria. Com a honra do avô, lustrou os sapatos cor-de-noite.
Branco o sapato, de salto. Branco o véu. Era como olhar o manto da Virgem.

Eles esqueceram seus pecados.

Era o mais perfeito rosto, maquilado. Era o anjo branco, que lhe caía nos braços, para todo o sempre.!
Uma lágrima caiu. A beleza dos olhos virginais mais pareceiam os olhos de viúva. Jogou para trás o buquê, nunca mais lhe caíram flores nas mãos.
Ele se embebedou, noite após noite, no cheiro do álcool, no gôzo das outras. O mocinho cheirava mal.
A princesa sumiu, aos poucos. Debruçada nas panelas sujas, atrás das pilhas de roupas, embaixo do nome Amélia.
O galante virou marmanjo no sofá, cerveja na mão - que não cabia mais carinho - , o futebol no olho - que não entrava mais donzela.
Enfiou, junto com o corpete, os sonhos num saco, que jogou no maleiro do guarda-roupa. Comida pras traças, roído pelo esquecimento.

Só se veste de branco uma vez na vida.

9.9.08

foi quando, de súbito, acordei. ou foi o exato instante em que tomei consciência de mim. sei que eu era de um cansaço extremo. os meus sentidos fervilhavam. o olho não abrira, ainda. e tudo era vermêlho. prêto no vermêlho. o ar entrava sêco, violento. rasgava-me a narina, a garganta. afogava o pulmão. sofri. a boca era viscosa, e sêca. uma sêde tamanha, desesperadora. ousei abrir a bôca, correr a língua pelos lábios. eram de uma dureza de terra, inóspitos, incautos.
tentei me mover. a dureza do chão era muita. e o calor. minha pele era brasa, ardia. o sol me fazia sensível, a tudo. o calôr da pele eu tentava por tudo amainar. mas pele sobre pele, era o fôgo, só.

a solução da vida, era água. o mistério líquido.

espiei. uma fenda na pálpebra. numa fresta, o céu de um azul atormentador invadiu-me inteira, eu engoli pelos olhos o sol e o mundo tôdo. fechei depressa os olhos: foi lento demais. fecundada pelo céu, estava grávida do mundo.
pisquei muito, e longamente.
quando o olho abriu, era uma guerra de dois lados, um valsado de dois antigos desconhecidos. era gritar de um profundo azul, sem nuvens. e o caminhar resignado de um marrom poeirento.
e como se fosse perder os sentidos, a sêde, o calor, o ardor, passou tudo. nada incomodava. eu tinha uma fome profunda do horizonte. e horizonte não havia. enquanto correr eu pude, eu corri. o chão comia meus pés, me queimava. desesperei-me. quis ver, e não podia. era de pó e incerteza meu futuro.
quis chorar, mas eu nada tinha pra verter. eu olhei ao redor de mim, o sol iluminava tudo. secava tudo. o sol escorria de beleza, e feio era, triste.
o susto era tanto que o grito entalou e nunca que escapava. eu olhava bem pro meio de mim. eu via o mistério tôdo. o mistério de mim, o mistério do mundo. todo o mistério se desdobrava na minha frente. sem uma sombra, eu vi o horror da minha existência. eu queimava meus monstros e os gritos eram de horror, deles, e saíam da minha minha boca.
rasgou-se no meu rosto um riso, nefasto. expurguei meus pecados, e eu, mãe do mundo, perdoei tudo. o mundo, no meu ventre, existia porque existia eu.

eu, mundo. eu, deus: verteu água da palma da minha mão.