22.6.09

[miniconto sem meias, II]

- Mas olha... Isso demora ainda?
- Nada. Já vão trazer a fita.
- Ah.
Vestida de preto e cinza, ela joga o lenço de um lado para o outro sobre os ombros, displicente. Faz um ritmo qualquer, batendo os dedos nos braços da cadeira. Por fim, abre a bolsa como se lembrasse de qualquer coisa demais interessante. O rapaz se pergunta se ela tem MESMO 30 anos. Achou que fosse da mesma idade dele, até mais nova, por-que-não? E nada dela achar a coisa, no mistério infinito da bolsa de retalhos.
- Você... quer alguma coisa? Um café?
- Hm! Um mojito, obrigada.
- Eu não tenho certeza de que...
Mas ela não queria saber de nenhuma certeza do cara atrás da câmera, quanto mais de uma dúvida. Sorriu aquele sorriso meio automático, do não-obrigada, do boa-tarde-eu-vou-no-16º. E voltou a procurar qualquer coisa na bolsa.
- Biá!
- Ahn.
- Bia, me arranja um mojito.
- Um o quê?
- Um mojito.
- Ô, porra!
- Eu aposto o que você quiser que sem vodka essa mulher vai falir com o filme. Juro.
- Tá.
Ela olhou com um certo prazer e surpresa pra bolsa, fechou os olhos. Sacou um maço meio amassado, de um cigarro que o câmera nunca tinha visto. Parecia daqueles filmes que a mãe assistia, meio musicais, uma chatice. Mas tinha lá seu charme - admitia. E bem. Talvez ela tivesse até mais de 30.
- Por que você me ligou?
- Oi?
- É, por que eu? Quem sabia dessa história?
- Bem... Me disseram que você queria ser escritora e que sua vida dava mesmo um livro.
Ela riu alto, com os dedos quase espontaneamente pelo rosto.
- É mentira?
- Bem. Não deixa de ser verdade. Mas as histórias vão se repetindo e mudam mesmo de cara.
- Eu...
- É rum, viu?
- Quê?
- Mojito. É rum, não vodka.
- Ah. ... Eu...
- Tudo bem. Sabe, essa história é meio tragicômica, ela muda conforme o meu humor.
Olhou pro céu cinzento, como se dissesse que era o pior humor pra contar aquela história.
- Pode ser qualquer outra, sabe...?
- Não, essa eu escolhi pra você.
Ninguém teve tempo de ver o Cau ficar quase mais vermelho que as unhas da moça. Chegou a fita. E o mojito.
(Ninguém viu a careta que a Bia fez quando viu a bituca de cigarro ser esmagada contra o seu tapete. A arte tem seus mistérios...)

18.6.09

[miniconto sem meias, I]

- Não é só porque você está gravando que eu vou fingir que não te conheço.
- Não precisa fingir nada. Só conta. Está bem?
suspiros



O cara que roubou minha meia-calça
(miniconto em capítulos escrito para andré heibs,
o cara que não roubou meia-calça alguma.)
Pelo jeito eu tenho que me apresentar. É difícil dizer de mim. Parece que eu tenho 30, não é? Bem, é quase isso. Não espere que eu diga que sou casada, nenhuma mulher casada perderia uma meia-calça na madrugada de um dia de semana, num bar vermelho.
Decerto as minhas unhas também eram vermelhas naquela quinta. Até porque eu jamais tomaria um mojito com unhas de outra cor, é uma questão de estilo, se você me entende. Era uma questão de estilo e de princípios.
Mas antes de contar a história, tem uma coisas que você precisa saber. 1. Que a meia-calça era azul marinho, fio 60. Se você é um homem, basta saber que ela não era transparente, até porque aquele vestido era um atentado aos pudores que nunca tive. 2. Que o cara chama O Cara mesmo, porque eu não tive a decência de perguntar o seu nome, a que ponto cheguei. E, por fim, 3. Que essa história é inteira verdade, mas é a minha versão. Então talvez tenha qualquer coisa de exagero, qualquer coisa de surreal.
Mas a verdade é que tudo isso aconteceu, e bem do jeito que eu vou contar.

- Ô, merda.
- Que foi, tou falando errado?
- Não, espera. Essa fita vai acabar.
longo suspiro.

10.6.09

[entrevírgulas, II]

Não pensava em solidão quando aluguei o primeiro sobrado aconchegante que apareceu naquele anúncio de jornal. Não queria mais ser menina, apesar de preservar ainda hoje o robe de seda cor de rosa. Presente de vovó. Não suporto cor de rosa, aliás. E sinceramente, eu não ligo em ter uma cama gigante e dividi-la com um gato. Nessas noites frias me embrulho com dois, três edredons, e ignoro o inverno forçado com uma ou outra dose de absolut, que me faz lembrar o calor dos lábios daquele que já foi chamado de meu, pelos outros.
Hoje, caminhando pela casa e vestida de lua, senti cheiro de música, enquanto Ella fazia explodir todos os meus sentidos naquele jazz só dela. Meu. Aumentei o som, sentei-me em frente ao espelho, e me quis. Escureci os olhos, perfumei-me, enfeitei a boca para combinar com o esmalte, contestando a palidez do meu rosto, e pesquisei a lingerie preta que me traz pose de lolita. O gato buscava carinho em minhas pernas. Tomei-o nos braços, e tive a certeza: eu era o mundo, àquela hora.
Um ou dois suspiros, e uma porta é aberta. Cenas instáveis. Eu lembrava das retinas dele me fotografando milimetricamente. Três horas da manhã. Eu. Ella. Álcool.
- Meus olhos nunca fecham.
Viro todas. De AngélicaBeatrizCarolinaCecíliaRitaGeni, pesam em mim todas as mulheres de Chico de uma só vez. Alterno entre passos trôpegos. Penso em línguas em céus de bocas. Espelho, de novo. Um rosto que não é o meu me observa, com olhos que me botam medo. Me escondia na penumbra de um abajur indiscreto: num canto vazio, te gastava em silêncio.
jaya, do lirícas, escorrendo aos litros.

8.6.09

outro lado II

tarveiz por inguinorança
ou mardade das pió
furaro os óio do assum-prêto
pra ele assim, ai, cantá mió.

Naquelas bandas, menino só recebia nome depois dos sete anos, se vingasse. Poucos vingavam. Mas, ele vingou. E se soubesse contar, já contaria 11 anos. Mas ninguém lembrava disso, e nem havia por que lembrar. Só mais um menino sujinho, praquela rés de cazuzas sem nome. E era assim mesmo que mainha chamava.
- Ô, Cazuza, chêgue...!
E na poeira vermelha que era aquelas bandas, cazuza só era nome de tudo quanto é menino. E como tudo que é menino, o cazuzinha se apaixonou. Nessa idade, inda não se gosta de menina. Tinha molequinho apaixonado de cabra, de galinha. Um amôr-de-fôgos, pra poder bolir e ter prazer no corpo magro.
Mas cazuzinha esse se apaixonou de um assum-prêto, que cantava bem ali, perto. Um canto triste, desolado. Feito ele mesmo.
E cada vez mais o tempo era bom de passar deitado na poeira, vendo e pequeno cantar só pra ele, um namorinho de muito exibir e muito escutar. Era mesmo parecidos. Magrinhos. Cobertos da cor da fome, uma preta, outra marrom. E os dois eram só mais um, naquele monte de tantos-iguais.
E um namoro sem fim, de se aprochegar. Tanto, que assum-prêto 'cabou pousado no braço do menino. Fechou os olhinhos ainda mais pretos que ele mesmo quando os dedos grossos, ossudos lhe fizeram um carinho meio sem-jeito. Piou.
- Cazuzá!, a mãe gritou de dentro. E o passarinho avuou.
A noite foi de vento, quem visse dizia que o inverno molhado ia rasgar a aridez do sertão. Foi de muito chover e inundar, mas só o trapiche do corpo magro do moleque-sem-nome. Era de um sofrer tão grande, o namorado que partiu, sem nem saber a dor que causava.
O menino queria amor, era só. Nem nome tinha para ser amado. Num falava como os grandes, e nem brincava como os pequenos. Não queria bolir com as cabras, num queria era nada. Queria seu passarinho-prêto, era só.
Padeceu. Mainha chamou o vigário, praquela alminha sem batismo subir pro céu. que o corpo suava uma febre terçã que nada segurava. O padre resolveu contar os anos, e viu que os sete já iam longe, mas já nem valia mais, o nome-santo.
E praquela morte anunciada, veio o amôr-primeiro, cantar seu canto triste na janela.
Cazuza riu, feito doido. Já morria. Deixaram até que ele levantasse da cama, quem é que podia sentir a febre partindo? O amor vinha redimir as dores, era a cura. 'Garrou um gravetinho, do chão. E pra num morrer-de-amor, resolveu ter perto de si o amôr primeiro, que tanto lhe amava e não sabia dizer, essa mania de avuar.
E com dois filetes grossos de sangue, selou o mais bonito gostar que o sertão já viu.

3.6.09

outro lado I

ele vai chegar, cheirando à cerveja.
se atirar de sapatos!, e dormir na hora, murmurando:
- dora...
(e você, é maria.)


sol no rosto, nos braços, nas coxas úmidas. e dora lavava o lençol manchado. sexo bom, esse da noite. amôr, ela supõe. quase até murmura, 'meu bem'.
ele chegou meio bêbado, dora nem liga. bateu no rosto, no corpo. e ria, na pele morena. e quando é que ele suspeitava que ela queria um beijo, um amôr?
pois bem, dora revolveu botar roupa-de-casa, pro amor nascer. deixou a flor no cabelo, deixou o cetim caídos pelos ombros. e baton carmin, então?! nunca mais, nunca mais.
- há de me amar.
quando ele chegou, dora sorriu, baixou os olhos. trocou o beijo de lingua, molhado, por um sorriso. e ele nem percebeu o universo desabando em bolhas de sabão.
- comida, preta? de onde é isso?
- eu que fiz.
- me dá cachaça...
- qual o quê!
e nada da branca, e nada da morena. só aí, que ele viu. dora tinha as unhas côr-de-nada, no corpo um cheiro de suor e cebolas. do carmim não se tinha notícia, nem do seu perfume ordinário. aqueles cachos pretos, que se esparramavam pelas costas, num trapo de chita qualquer, amarrados. C-O-Q-U-E.
e ele foi pegando um nojo. na comida, nem tocou. e já não tem prazer no sexo sussurrado, sem gargalhadas. não gozou.
dora botou cada desejo no feijão. passou uma folhinha de alecrim pelo corpo, pra ter cheiro de casa, de lar. se vestiu de mulher-da-vida inteira.
e, que sexo bom. e que homem bom que ela tinha, meu deus. dora sabia fazer amor, e nem sabia disso. e quando quase gozou, pela primeira vez na vida,
ele saiu,
levantou,
se enfiou na calça,
não fechou a camisa.
e dora sem entender nada.
- vou voltar pra maria. mulher por mulher, já tenho a minha. vocês estragam fácil. e deixe que janto em casa. com a mulher que sabe o que eu gosto.
dora tomou um copo de cicuta.
(antes da porta abrir, maria mistura chumbinho no feijão.)

1.6.09

Naquela época, eu ainda usava as calças curtas, de menino. Faz tempo, mais ainda me lembro.
Minha primeira namorada. Devia ter a minha idade, mas era morena, seu corpo ainda infantil já tinha qualquer coisa lasciva, naquele jeito de tornear o vestido pobre.
Eu a esperava na sacada, enquanto os meninos menores se aprontavam. Ela trabalhava. Eu, ia ao colégio. Ela não devia saber ler. Aposto como não sabia. Mas, sorria. E era um sorriso de enternecer.
Era só o sorriso, pela manhã, e a expectativa do namoro adiado, até as oito, nove horas, quando voltava, cansada e com os cabelos pretos caídos no rosto. Quase sempre se detinha, a casa grande iluminada. E eu dizia:
- Quer chocolate, Luzia?
E ela replicava: ah, Menino! Que meu doce é café, com rapadura.
E não tinha jeito, nunca, de me chamar de Pedro.
- É Pedro, Luzia.
- Sinhozinho.
E continuava naquele passo cansado que as mulheres daquele tempo tinham.
Porque Luzia trabalhava, eu nunca entendia. Da pele morena, tão linda. Uma vez me disse: deixe disso, branco.
Branco, branco, eu nunca entendi.
Sei que Luzia foi minha primeira traição.
Eu tinha as palavras mais doces pra ela, e o doce na mão. E ela nunca me vinha. Mas, namoro é assim mesmo. E um dia, Luzia foi trabalhar comendo pão.
- Quer café com leite, Luzia?
- Tenho pão, já, Menino.
E sorria, dum sorriso perdido. me amava, decerto.
Naquela quermesse, Luzia apareceu de braço dado com o Quim, o filho do padeiro. E daquele sorriso perdido, eu não tive nem a raspa.
Luzia, cabrocha traiçoeira.
Como é que me troca, Luzia, com chocolate na mão, por um pão, assim, sem nada?