24.10.10

São Paulo, 31 de março de 1968.

Amor,

é preciso que você volte. Assim que pegar esse papel manchado de tudo quanto chorei, é preciso que volte agora. É preciso que me ajude a limpar a casa, ainda os nossos cheiros imperam nos lençóis. Você deixou amor espalhado no chão, e canções encostadas nas frestas. Achei forrando a fruteira os poemas que você arrancava dos livros das bibliotecas, porque eram seus, e ninguém mais deveria lê-los. Me surpreendeu uma marca de batom, encostada na esquina entre o nosso quarto e o resto do mundo inteiro. Achei aquele velho quebra-cabeças que nunca terminamos de montar, mesmo quando acabava a luz, as peças nos faziam perder-se em mares nunca dantes navegados.
Eu preciso que você me traga sabão, eu preciso lavar as paredes, o chão, a nossa cumplicidade. É preciso que tudo esteja limpo, agora, porque não há mais nada, você vê? Tudo que me sobrou cabe naquela mochila velha, que compramos para acampar. E é por isso que eu preciso que você venha. Precisamos atirar o piano janela abaixo, é preciso que ele possa abrir vôo. Precisamos atear fogo nos nossos livros, você sabe que a nossa história acaba se eles queimarem. Eu arranhei os discos, mas guardei um vinil para você, para que se lembre de que eu parti, mas ainda vivo.
Precisamos dividir o colchão pequeno uma noite mais, afogar nossas mágoas na nossa solidão conjunta; foi isso que vivemos. Uma longa solidão conjunta, meu bem, e é preciso que nosso suor se misture uma última vez, para que saibamos dos nossos já mortos filhos, do nosso destino despedaçado.
Meu amor por você não terminou. Mas a minha paciência, a minha passividade, o bônus dos anos a serem gastos. Acredite se puder, eu desisti dos exageros, eu desisti dessas bobagens. Sobrou o minimalismo, e você tem mais peças do que eu sei juntar, e me desgasta te atar mil vezes, para que as outras desatem e eu volte a juntar-te em peças.

Eu estou indo embora. E agora, não há mais culpa, eu irei sem que seus olhos molhados me partam. Vem, e traz toda essa mágoa, que a gente banha ela em álcool e coloca na estantes. Vem, que está na hora de você aprender piano.

da sua ainda viva,
Amélia.

2 comentários:

O Último disse...

Você viaja no fim de semana que vem? Que acha de nos encontrarmos no domingo durante o dia para gerarmos nosso filho?

Que material devo levar? (Essa é a deixa pra tu fazer poesia.)

Te beijo.

[E ah, que belo o escrito. Intenso, impetuoso e exagerado como toda a paixão, mas sem desembrulhar no clichê - te mando um abraço pra abrandar essas angústias inabrandáveis se elas forem mais do que literárias]

p. disse...

"e você tem mais peças do que eu sei juntar". adorei isso.

quanto ao plágio.. bem, acho que não é não, no fim das contas amor é tudo igual... eu acho.