Cena 1. Alguém afana uma carteira no ônibus lotado. Ninguém vê.
Cena 2. Um homem enfurecido arremessa um vaso contra a sobrinha e a mãe.
Cena 3. Um homem encoxa uma mulher que não tem para onde fugir no metrô lotado - ela não reage como seus preceitos indicavam.
Cena 3. Um profissional experiente mina pouco a pouco o trabalho de uma assistente esforçada.
Cena 4. Duas meninas, saindo da faculdade, conversam por mais de 30 minutos sobre a enorme importância do cabelo para a mulher moderna. Nenhum assunto acadêmico.
Isso acontece a todo momento. O que não quer dizer que é normal. Não é. Não, as pessoas não demonstram poder pelo sexo, pela força, pela hostilidade. Isso não é poder. Expor suas forças é um jeito de demonstrar a fragilidade, a insegurança. O ataque não é a melhor defesa. Não é necessário atacar, desde que não se tenha defesas. E expondo o mais sensível e sincero de mim, tudo me atinge em cheio. Um encoxo no trem é o mínimo que se pode esperar: ninguém se revolta contra o que mantém os trens cheios, é obvio que empurrar e encoxar é o jeito mais simples de liberar suas tensões e frustrações do dia a dia no mais fraco. No impotente. The silence of the lambs. Não, ninguém é inocente. Mas todo mundo cala.
Sim, o mundo vai continuar torto, porque nós existimos, e existir é a única arma que ainda temos.
(e aqui tudo se torna um torvelinho, e tudo conflui para a MINHA existência)
Porque o choque, a afronta, o confronto pacífico foi o que eu escolhi. Por isso esse cabelo, por isso esse corpo, por isso essas tatuagens. Não, eu não vou me render ao esquadrão da moda e ceder minhas palavras de revolta e transformação em prol do cabelo. Eu não vou sacanear quem tem menos voz que eu. Nem no ônibus, nem no trabalho, nem na vida.
E não, eu não vou aceitar que essas coisas acontecem. Eu queria estapear a cara de todos os homens que usam do gênero/força para satisfazer um desejo. Eu queria fazer os políticos & donos de cia. de transporte entrarem na Sé todos os dias, às 18h. Eu queria explicar pra minha vó que ela não precisa se subordinar ao meu tio só porque ele é homem. Mas eu não posso. Porque eu sou só eu, e impor minha visão aos outros é ser como eles. Porque eu não sou como eles.
Mas eu posso continuar vegetariana. Eu posso continuar gentil e sorridente. Eu posso continuar a acreditar na bondade, apesar de todos os contra-indícios. Eu posso me atirar sempre no que eu faço. E eu tenho o sumo, o extremo, o maior direito de chorar até soluçar. No ônibus, na rua, em casa, no trabalho.
Eu quero continuar mole. Eu quero ainda sentir tudo, intensamente.
Eu não tomo mais pílulas.
Para a Lulu, que não se importa quando as coisas ficam feias e está sempre aqui. E sempre íntegra, e sempre limpa.