Como sempre, o ônibus estava muito cheio. E ele se ofereceu para carregar a minha bolsa. Só quando a entreguei e vi suas mãos ásperas, grandes fazerem o movimento para receber o fardo, eu reparei nele. Era um homem triste, perdido em pensamentos. Muito magro, muito preto, muito sério. E olhando aquele rosto de linhas fortes e olhar melancólico, eu vi você, daqui muitos anos, naquele rosto.
Lembrei do seu corpo magro que agiganta quando você toca bateria. Lembrei das tardes lindas no quintal da sua casa, a cerveja, os risos. Lembrei da sua mãe costureira e seu pai pintor, pensei muito em como é linda uma vida dedicada ao amor, à arte. Mas, principalmente, eu lembrei dos seus olhos, dos olhos da sua irmã e de seus pais.
Senti uma saudade grande de quando você era parte da minha vida, mas não lembro de ter dito isso alguma vez. Que eu gostava de você aqui. Acho que eu nunca te disse que a sua casa é um dos lugares mais lindos que eu já conheci, que é um dos lugares em que me sinto em casa. Mesmo mal conhecendo vocês todos. Mesmo sendo só uma velha conhecida.
Os pensamentos se encadeavam rapidamente, muito doces, e me davam ganas de descer, pegar um ônibus no sentido oposto e te dizer tudo isso, daquele meu jeito desesperado de dizer as coisas. Sentar num bar e ter aquela conversa cheia de risos que você sabe fazer tão bem.
Quando chegou o ponto dele descer, eu já queria poder abraçar o estranho, só por me lembrar - na sua magreza e sua pretura - de alguém que eu gosto. Só por me fazer querer dizer que gosto. Só por me lembrar que a vida na cidade pode ser linda, que as gentes da cidade podem ser lindas.
Para Márcio.