11.5.11

Falsa crônica do ônibus.

Como sempre, o ônibus estava muito cheio. E ele se ofereceu para carregar a minha bolsa. Só quando a entreguei e vi suas mãos ásperas, grandes fazerem o movimento para receber o fardo, eu reparei nele. Era um homem triste, perdido em pensamentos. Muito magro, muito preto, muito sério. E olhando aquele rosto de linhas fortes e olhar melancólico, eu vi você, daqui muitos anos, naquele rosto.
Lembrei do seu corpo magro que agiganta quando você toca bateria. Lembrei das tardes lindas no quintal da sua casa, a cerveja, os risos. Lembrei da sua mãe costureira e seu pai pintor, pensei muito em como é linda uma vida dedicada ao amor, à arte. Mas, principalmente, eu lembrei dos seus olhos, dos olhos da sua irmã e de seus pais.
Senti uma saudade grande de quando você era parte da minha vida, mas não lembro de ter dito isso alguma vez. Que eu gostava de você aqui. Acho que eu nunca te disse que a sua casa é um dos lugares mais lindos que eu já conheci, que é um dos lugares em que me sinto em casa. Mesmo mal conhecendo vocês todos. Mesmo sendo só uma velha conhecida.
Os pensamentos se encadeavam rapidamente, muito doces, e me davam ganas de descer, pegar um ônibus no sentido oposto e te dizer tudo isso, daquele meu jeito desesperado de dizer as coisas. Sentar num bar e ter aquela conversa cheia de risos que você sabe fazer tão bem.
Quando chegou o ponto dele descer, eu já queria poder abraçar o estranho, só por me lembrar - na sua magreza e sua pretura - de alguém que eu gosto. Só por me fazer querer dizer que gosto. Só por me lembrar que a vida na cidade pode ser linda, que as gentes da cidade podem ser lindas.

Para Márcio.

10.5.11

Amor, amor.

O seu rosto encaixa no meu pescoço, e nossos braços gostam de se enrolar. A minha pele gosta dos seus dentes. A minha idéia gosta da sua história.
E eu queria te dizer tudo isso, mas o Jack não deixa. Tua lingua não deixa.

(e eu prefiro continuar calada.)

8.5.11

Por que fazer bolo de chocolate?

Porque desde 2007, nada me sara tão depressa dessas dores que eu não sei o que são.

no quarto

me visto com umas bolinhas brancas geniais
no fundo azul.
será que me perdi no tempo
ou me recuso a estar nele?
(ou será que, como diria ele, numa hora dessas,
eu sou tão cult-moderninha
- mas não admito, jamais!-
que consigo usar bolinhas?)
que se fodam as bolinhas:
hoje não saio mais de casa.

~*

na cozinha

achei que tinha mais isso não.
ou a gente sofria no quarto atrás da porta
ou bebia sofregamente até esquecer.
não sabia que eu sofria na cozinha.
achei que as feministas todas tinham abolido isso.
sutiãs queimados:
era a solidão queimada da mulher-Amélia,
achei que a mulher de verdade tava na liberação sexual.pois então achei errado.
porque sofro na cozinha, sim,
batendo bolo com samba.

~*

receita de amargar saudade

uma ou duas doses de cartola devem ser o bastante
duas de farinha
três ovos
uma de leite
quatro de manteiga
duas de açúcar
fermento - um tanto
baunilha - outro tanto
chocolate.

levar ao forno e regar com lágrimas
soluços a gosto.

(servir com morangos. quando degustado a dois, em geral, o sabor se perde.)


eu me li, aqui, depois de tanto tempo.

4.5.11

Antirrealidade.

E sentado na janela, tomando seu café, fumando o primeiro de muitos cigarros, viu uma cinza ficar parada no ar por muitos segundos, bem na altura dos seus olhos. Assim que se deu conta do imenso acontecido, pensou: "Isso não é real"; com a mão afastou para longe a cinza e toda a magia acabou-se, já que ele não podia dar-se ao luxo de ver flutuarem coisas que devem cair.
Mas não pôde apagar a ideia fixa de que nem tudo precisa ser como lhe disseram que seria. E enquanto a água do chuveiro cantava ao encontrar sua pele já cansada de viver, ele decidiu subverter o mundo. Foi trabalhar de chapéu e sapatos bicolores (mulheres com roupas justas e desconfortáveis, saltos muito cruéis olhavam para ele, julgando sua atitude tão fora de propósito). Já no trabalho, se divertiu sob os olhares sufocantes de quem preferia sofrer na labuta diária. Não falou mal de ninguém.
Duas semanas depois, contas feitas e refeitas, deixou o trabalho a fim de olhar o mundo. E olhava as pessoas todas, as passantes, as tristes, as loucas. E feito uma garoa muito fina que umedece tudo quanto toca, as gentes foram se infiltrando pelas suas frestas. Quando ele se deu conta, estava apaixonado demais pela existência. Amou poetas, amou desconhecidos, amou o cobrador do ônibus. Ele não era feliz. Era empírico. Chorava quando eram horas de lágrimas, todas as dores eram pacientemente tratadas, amava de todo o coração. Sem fazer nada de mal, nada demais, pintava, cantava, fazia tudo conforme a vontade vinha, sem se preocupar com os inevitáveis erros e descompassos.
Mas que era estranho, era estranho.
Um homem que sorri para desconhecidos, que horror! Que faz bolhas de sabão em pleno horário comercial. Que solta serpentinas no horário de pico! Um abuso, um absurdo. Uma disparidade, um pária, um perigo. Um louco.

Por fim, num dia em que distribuía morangos e amoras a crianças, chefes e mendigos, lhe ensacaram. Como se ensaca um monte desagradável de lixo, num saco preto, plástico, inerte.

2.5.11

Vejo mundo onde não tem.

Tudo começou lendo o blog da Jessica. Até que li um post em específico e lembrei que todas as manhãs, há meses, eu penso em escrever isso, mas quando chego no trabalho eu já esqueci.

Eu sempre enxerguei umas imagens subjetivas no mundo, prontas para serem tiradas da realidade e viradas em arte. A primeira lembrança que eu tenho disso foi de uma viagem com a minha mãe, quando eu tinha uns 6 anos. Todas as noites eu ficava uma eternidade olhando para o lustre, que fazia uma sombra igual a uma menininha com o cabelo preso em dois. Depois disso, era muito comum exergar além do que eu via.
Todas as manhãs, enquanto tomo banho, eu vou achando cenas no meu box. Um beijo de cinema, um cachorro de três patas, uma taça de martini. Já tentei desenhar, mas no papel eles não tem função, assim tão soltas. São só mais um rabisco. (Engraçado eu ir pesquisar imagens, né. Elas já estão na minha cabeça, afinal.)
E daí me lembrei da minha surdez seletiva. Eu ouço bem. Mas ouço tudo errado: e é aqui que as coisas ficam divertidas. A frase é a mesma, mas eu capto duas ou três palavras completamente nonsense, mas que encaixam. E isso garante muito riso por muito tempo, não só pra mim, mas pra todo mundo. Em menor medida, ainda tem o fato de eu trocar palavras (coruja e tartaruga, meu bem, são a mesmíssima coisa, isso não é confusão, é convicção) e a ordem das frases. É um estilo de sabotagem, de comédia no meu estilo.

O meu cérebro se recusa a funcionar de acordo com o modus operandi de tudo. A minha personalidade estranha e autodeterminada destruiria meu corpo se a minha percepção de mundo não se propusesse a interferir claramente no cotidiano. Se o ônibus fosse só o ônibus e não houvesse mágica em como os passarinhos se dispõem no fio, na sequência das placas de carros e padrões na calçada, o que me faria sair da cama todas as manhãs? E sorrindo?