26.11.12

Ostre-se.

Nasceu dobrada, deslizando sob o azul. Por fora, concha. Por dentro, molusco, mole, víscera. Nasceu sem saber que tinha nascido. Cresceu sem saber que existia. Sabia o sal, o mar, a maré, o clima. Sabia quente e frio, mas não sabia  calor. Não sonhava, porque não tinha futuro, não tinha medo, não tinha desejo. 
Escolheu de cama uma pedra, e lhe bastava a dureza contra a pele áspera. E num bocejar distraído, como quem se espreguiça sem largar do travesseiro, engoliu um grão. Um pesadelo grão, um grão pesado. Um estrangeiro invadindo seu âmago, seus mistérios, seu não sentir. Não sabia gritar, não tinha abrigo que lhe protegesse do estranho. Seu meio exposto, do lado de dentro. Como não sobrasse mais nada, chorou. 
Tanta lágrima, e a dor era constante, irritante, aguda. Lágrima branca, a escorrer pelo tempo. Os sentires amargos se espalhando como raízes conscientes na sua existência tão sensorial. Já esquecida de sentir o azulmar, por sentir tanto o pesogrão, um dia não existia mais mar. E a dor da secura quando já tão acostumada à água, o incômodo. 
Dentro, peso. Fora, árido.

Desdobrada. Por dentro, um segredo. Por fora, um emaranhado de dedos e visgo. Visceralmente exposta, pulsando numa morte seca, sem sangue. Um grão parece leve quando não há água-e-sal. Um riso humano se espalha no ar, se esparrama, se ri: é uma pérola. 
Desostrada, a massa cinzenta em meio a tantas outras iguais, não gosta da risada feliz. 

22.11.12

Retratinho #1

Era boneca de pano. Não por ser de macela e ter olhos de botão, mas por não saber ser outra coisa. Não era como os blocos de montar, que podiam ser tudo. Era uma coisa só. Não tinha bolhas de sabão, nem sininhos. Tinha pele surrada de tecido qualquer. Tinha um vestidinho já desbotado, de tanto ver água-varal-sol. Não tinha mais o cheiro do seu recheio, era fadada a ter caruncho ou mofo, rasgar. 
Era boneca de pano, e não ficava na ponta do pé. Não voava por cima do muro, não conhecia o mundo. Não por falta de sonhar, mas por falta de quereres. Quando se é boneca, o sorriso na cara é todo-dia, mas vai-se secando tudo por dentro, murchando, e sorrindo. A boca pintada e os olhinhos tortos de botão.
Era boneca de pano. Num mundo em que tudo tem motor-corda-botão. Era aquilo ali, só. Não brilhava, não zunia, não sabia as horas. Num mundo em que tudo é de plástico, de metal, virtual. Tinha as costuras pra fora, um bracinho mais grosso que o outro. Não tinha articulações, nem cintura, nem peito. 
Era boneca de pano e se sonhava passarinho, barco, balão, nuvem. Passava os dias no fundo do cesto de vime, esperando a infância, ou o que viesse depois.

19.11.12

O zoológico imaginário (ou Como Freud parou de fazer sentido pra mim)

Não sei se é a idade, ou a responsabilidades, ou as contas ou a saudade. A verdade é que quanto mais passa o tempo, menos culpa minha mãe tem. Claro que sempre será culpa dela, para o bem ou para o mal, mas parei de culpá-la pelas minhas próprias frustrações (beijos pros infinitos analistas).
Uma das culpas aleatórias que mais atribuí a minha mãe-preta foi por nunca ter tido pets. Eu sempre quis um cachorro. E nunca tive um. Hoje eu de fato entendo que seria um inferno uma criança (depois uma adolescente) num apartamento com um cachorro. Gatos fazem cocô na areia, tomam banho sozinhos, não exigem carinho e nunca saem pra passear e já não é fácil. 
Mas eu só sei disso agora.
Exumadas as culpas, ao que interessa: ao longo dos anos, eu fui criando um zoológico imaginário. Não contaremos os dinossauros, e a fase em que eu tinha plena certeza de que seria bióloga um dia para encontrar os tais répteis. Lembro quando era bem pequena, assisti Meu amigo Panda e tudo que eu mais queria na vida era um pandinha (anos depois, já crescida, eu e mãe ganhamos dois bambuzinhos e seria deselegante negar que achei ser esse o momento exato pra adotar um panda). Sem pandas, tampouco cachorros, eu tive um peixe dourado, o Pixe, e muitos outros peixes depois. Mas amor de peixe é esbugalhado, e eu era só uma menininha. O mais estranho de tudo, é que por anos morei na mesma casa que o Linus, o cachorro que passou a vida preso num cercadinho de 1 x 1m, sem nunca ter encostado a mão nele. Hoje tem a Amorinha e o Eros, meus amores incondicionais, mas o zoológico já está feito.
Além de um blackbird/ frango/ poba e um elefante tatuados, eu tenho uma infinidade de pelúcios: um cão teórico socialista, uma vaca-hipopótama de uma pata só, um urso chocolate, um tarepanda. Um tatu de argila, um gato de madeira, um elefantinho roxo florido, infinitas joaninhas, uma girafa de pois, tantas roupas e bijuterias com temas animais quanto uma criança de sete anos. Além disso, a minha eterna vontade de pegar os insetos com a mão e a tristeza pelo vôo insistentes dos bichinhos; e atualmente como defensora dos insetos contra as caçadas do Eros. 
E que tem isso? 
Não sei. Mas é um zoológico lindo. E esses bichos, mainha ama todos.


P.S. Nunca li Freud nem nada, era só pra ficar com um nome chiquetoso.